–MÁRCIA SEMER-
Neste 2019 a Organização Internacional do Trabalho completa 100 anos. A OIT é a primeira grande entidade internacional de direitos. Foi criada do bojo do Tratado de Versalhes, ao final da Primeira Guerra Mundial, com o objetivo oficial de promover a justiça social.
A instituição de um organismo de proteção do trabalho, naquela quadra da história, cumpria uma dúplice função: (i) atuar para melhoria das condições de trabalho, estabelecendo regras gerais de convivência “mais civilizadas” entre o mundo do capital e do trabalho, e (ii) buscar caminhos para pacificar as tensões do mundo do trabalho a fim de garantir condições mais favoráveis à expansão da produção, do capitalismo.
Assim como a criação dos Estados Nacionais no final do século XV abriu caminho para o desenvolvimento do comércio, no século XX as agências internacionais como a OIT e mais tarde a própria ONU apresentam-se como espaços privilegiados de mediação de conflitos, adotados exatamente com vistas a promover a paz, indispensável ao desenvolvimento dos negócios de modo geral.
É preciso compreender que com a industrialização crescente, o período desde a segunda metade do século XIX até início do século XX esteve marcado por forte turbulência nas relações entre capital e trabalho. As jornadas de trabalho extenuantes, as condições de trabalho desumanas e a ausência de normas protetivas criaram um ambiente de conflagração, de revolta e são inúmeros os embates entre trabalhadores e patrões na batalha pelo estabelecimento de direitos trabalhistas.
No Brasil data de 1858 a primeira greve. Ocorreu no Rio de Janeiro e foi protagonizada pela categoria dos tipógrafos. A grande greve geral de 1917 em São Paulo foi duramente reprimida, assassinado no confronto o sapateiro Antônio Martinez. Antes disso, em 1907, 132 sindicalistas haviam sido expulsos do país em reação governamental à criação da COB, Confederação Operária Brasileira, em 1906, primeira entidade operária nacional.
Os primeiros sindicatos de que se tem registro são ingleses, e datam de 1833 (trade unions), sendo que na França, Alemanha e Estados Unidos os sindicatos recebem autorização de funcionamento em 1864, 1869 e 1866, respectivamente.
Influenciados, notadamente a partir da segunda metade do século XIX, pelas ideias socialistas ou anarquistas, a construção dos sindicatos tem raiz histórica na proposta de luta coletiva direcionada à melhoria da remuneração e condições de trabalho, mas também na perspectiva de estabelecimento de uma nova ordem, uma ordem em que o proletariado assume o protagonismo na produção de bens e serviços.
Não se perca de vista que a Revolução Mexicana de 1911 e, principalmente, a Russa de 1917, ademais, foram acontecimentos decisivos de alerta para os capitalistas, de modo que a OIT aparece nesse contexto de compreensão quanto à necessidade de “civilizar” o capitalismo, a fim de mantê-lo atrativo e pujante.
Desde a Revolução Industrial até quase o final do século XX todo ambiente de trabalho que se construiu teve por base a relação de emprego. Os direitos conquistados e assegurados nesse período são direitos protetivos dos empregados e do emprego. A atuação da OIT, consequentemente, teve e tem centro na fixação de normas protetivas do trabalhador empregado.
Os sindicatos, de modo semelhante, floresceram como organismos de defesa dos trabalhadores empregados, tanto no Brasil quanto no mundo. O sindicalismo é movimento intestinamente atrelado ao conceito de emprego, seus filiados são, substancialmente, trabalhadores empregados das diferentes categorias.
Todo o ambiente de trabalho dos últimos 150 anos, passando do taylorismo para o fordismo e até o toyotismo (a partir dos anos 60), pautou a construção do pensamento e da atuação do sindicalismo para a defesa do trabalho na perspectiva do emprego. A formalização do emprego, a melhoria da remuneração dos empregados, das condições de trabalho dos empregados, os direitos de aposentadoria dos trabalhadores empregados, tudo isso eram (e são) as demandas típicas dos sindicatos.
“…a partir de 2000, estamos assistindo ao desmonte da estrutura histórica da relação empregatícia”.
O contrato de emprego constituiu-se no instituto jurídico formal das relações laborais. Caracterizado pela subordinação do empregado ao empregador, pela continuidade do serviço prestado e pelo pagamento de contraprestação ou remuneração devida pelo empregador.
Ocorre, entretanto, que o final dos anos 90 e mais precisamente a partir dos anos 2000, de forma crescente e acelerada, estamos assistindo um fenômeno de desmonte dessa estrutura histórica chamada de relação empregatícia.
O primeiro movimento envolveu a chamada terceirização e quarteirização do emprego, que subordina o empregado a empregador distinto daquele para o qual presta serviços, deslocando seu senso de pertencimento dentro da empresa onde trabalha e, no mais das vezes, alterando a organização sindical afeta à defesa de seus direitos.
Na sequência, houve proliferação da pejotização[1], em que o trabalhador transforma, formalmente, a relação subordinada de trabalho em relação autônoma. O trabalhador deixa de ser empregado para tornar-se empresário ou empreendedor de si mesmo e presta serviço como pessoa jurídica, sem a guarida dos direitos trabalhistas. Com a pejotização, o trabalhador além de perder o vínculo trabalhista com o empregador, costuma ainda perder a relação com o local do emprego e com os demais trabalhadores. Consequentemente, perde o sentido de pertencimento da empresa e também da categoria profissional, e, não sendo empregado nem tampouco empregador, não integra sindicato ou qualquer movimento de defesa coletiva de direitos.
E, recentemente, para além da pejotização, temos a uberização, uma forma mais precarizada ainda de relação de trabalho, em que o trabalhador emprega seus próprios meios e verdadeiramente paga para trabalhar para aplicativos[2] (uber é o mais proeminente e por isso dá nome ao fenômeno) de prestação de serviços de transporte e entregas em geral, por enquanto. Evidentemente, tal como ocorre com a pejotização, os trabalhadores uberizados, também empreendedores de si mesmos, não integram o perfil padrão do trabalhador sindicalizado e, com isso, o contingente de trabalhadores sindicalizáveis a partir da concepção tradicional de sindicato vem decrescendo.
O cenário é de fragmentação da identidade, para usar a expressão de Stuart Hall[3], dos trabalhadores e desmantelamento da relação tradicional de emprego, que inspirou, sustentou e sustenta as organizações sindicais e a própria Organização Internacional do Trabalho. Transformação de tamanha monta está desafiando a sobrevivência dos sindicatos, do próprio direito do trabalho e dá lugar ao que vem sendo chamado neoliberalismo.
Pierre Dardot e Christian Laval na explicação desse quadro afirmam que “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade (…). O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo (…). O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência.”[4]
A racionalidade descrita por Dardot e Laval destroi fundamentalmente o mundo do trabalho na concepção até então existente. A erosão do emprego como relação determinante do mundo do trabalho é a marca indelével dessa nova racionalidade. Será o fim do sindicalismo, da OIT ou do direito do trabalho?
O desafio não é pequeno. A resposta incerta. A reinvenção necessária, pois as bases, em boa medida, alteraram-se.
Se a fragmentação nas relações de trabalho milita em favor de uma perspectiva de ocaso das lutas coletivas e das organizações formatadas para esse fim, a precarização, a redução sem precedentes de direitos básicos do trabalho como férias, descanso semanal remunerado, aposentadoria, dentre outros, tensionam a favor da organização ou da reorganização de formas coletivas de luta.
Talvez a célebre discussão sobre o futuro dos sindicatos travada entre Lenin e Trotsky[5] em ambiente completamente distinto do atual (o alvorecer da Revolução Russa), mas igualmente desafiador, possa trazer luzes para a reorientação do movimento sindical. Afinal, ao debater a pertinência dos sindicatos num Estado que se propôs a eliminar a propriedade privada, muito se levantou sobre a razão de existência desses organismos.
A compreensão profunda do mundo do trabalho e a especial capacidade de ler a realidade serão fundamentais nessa empreitada.
Notas:
[1] Pejotização nada tem a ver com a indústria autonomilística Pegeout. Pejotização vem de PJ, pessoa jurídica.
[2] Os aplicativos são plataformas de software desenvolvidos por empresas que gerenciam o fornecimento de serviços. Atuam essas empresas, por seus aplicativos, como “facilitadoras” da prestação do serviço fornecido diretamente pelo trabalhador.
[3] Hall, Stuat. A identidade Cultural na Pós-modernidade. 1ª.Ed. Rio de Janeiro, DP&A, 1997.
[4] Dardot, Pierre e Laval, Christian Laval. A Nova Razão do Mundo, São Paulo, Ed. Boitempo, 2016, pp. 17.
[5] Lenin, V. Acerca de los Sindicatos. Colección Clásicos Del Marxismo, n. 10., Buenos Aires, Nuestra America, 2014; Trotsky, L. Acerca de Los Sindicatos. Colección Clásicos del Marxismo, n. 9, Buenos Aires, Nuestra America, 2014.
Márcia Semer – Procuradora do Estado de São Paulo Mestre e doutoranda em Direito Público da USP. Presidente do Sindiproesp.
Publicação da revista PUB.