Derly Barreto e Silva Filho
Procurador do Estado de São Paulo
Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP
Presidente do Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo – SINDIPROESP(biênios 2015-2016 e 2017-2018)
Membro das Comissões de Advocacia Pública, de Direito Constitucional e de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP (triênio 2016-2018)
Na evolução do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito, dois elementos-chave destacam-se: o aparecimento e o reconhecimento de grupos organizados, que canalizam aspirações e reivindicações sociais, e a superação gradual do antigo sistema de sufrágio censitário, que limitava e deturpava a vontade popular.
Nos séculos XVIII e XIX, quando o Parlamento era composto de aristocratas e suas funções estavam umbilicalmente ligadas aos interesses da classe burguesa, centradas na proteção, consolidação e manutenção das esferas jurídicas individuais, não havia lugar para disputas ideológicas, mas apenas para a afirmação da vontade geral.
As sociedades europeias dessa época eram tendencialmente monistas. Os cidadãos politicamente ativos – os que elegiam e se faziam eleger representantes nos Parlamentos e em outros órgãos eletivos – não estavam entre si divididos, como os nossos contemporâneos, por concepções diferentes quanto à forma como deveriam viver. As forças sociais eram, por isso, relativamente consensuais quanto às pretensões endereçadas ao Estado.
Com a ampliação do direito de sufrágio a partir da segunda metade do século XIX, o quadro altera-se drasticamente. A organização da sociedade em classes e grupos de interesses e a democratização do acesso ao Legislativo – com o ingresso de novos representantes eleitos por novos eleitores – promovem a ruptura do modelo político centrado na plena identidade entre burguesia e Parlamento, na homogeneidade de interesses representados no Poder Legislativo.
O debate parlamentar passa a ser ideológico. Correntes de pensamento e aspirações politicamente divergentes começam a confrontar-se em torno do papel do Direito e do Estado, e isso modifica profundamente as características da instituição parlamentar e das leis, porquanto as câmaras legislativas transformam-se em espelho da sociedade, mosaico fiel de sua multifária composição, expressão de seus vários interesses e ideologias, amiúde conflitantes.
Então, com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, e, deste, para o Estado Democrático de Direito – modelo de Estado compromissado em garantir uma sociedade pluralista –, tornou-se necessário viabilizar a participação política dos novos grupos sociais, surgidos dos movimentos populares.
Essas transformações político-sociais têm reflexo direto no modo de produção jurídica do Estado Democrático de Direito contemporâneo, que não mais se dá unilateralmente.
O desafio atual do Estado Democrático de Direito, tanto no que se refere à produção do Direito quanto aos efeitos e aos destinatários de suas normas, reside em obter a máxima eficácia social e legitimidade democrática.
Qual o papel reservado à Advocacia Pública como função constitucional essencial à justiça no estágio atual da democracia brasileira?
A Advocacia Pública, por suas consultorias e assessorias jurídicas, compostas por advogados públicos concursados (cf. arts. 131 e 132 da Constituição da República), deve atuar fundamentalmente na fase pré-legislativa das leis, no âmbito do processo administrativo legislativo, em que o Estado há de submeter a ideação legislativa à consulta e à discussão popular e buscar ouvir e persuadir os seus destinatários, de modo a diminuir o distanciamento entre os cidadãos e as leis, que ocorre por problemas de diversas naturezas, como falta de diálogo, clareza e compreensão e incertezas ou preconceitos acerca do Direito vigente ou daquele que se propõe.
Tem razão Oliveira Vianna quando adverte que consiste um erro de psicologia política a “atitude de isolamento e exclusivismo das nossas classes políticas em relação às outras classes”, pois “nenhuma lei vinga, nenhuma lei é eficiente, sem a adesão moral do povo”; “em geral, as leis em que o povo não colabora, não têm essa adesão” [1], entendimento que acompanha o pensamento de Jean Cruet, quando diz: “Do fraco resultado da coação deve-se concluir, em primeiro lugar, que nas relações entre o Estado e os particulares, o elemento essencial é a cooperação, não a subordinação” [2].
Trata-se, assim, de emprestar maior racionalidade ao processo de produção jurídica, para lograr maior eficiência normativa. Trata-se de legitimar democraticamente os projetos estatais mediante um processo de debate público, no qual as discussões devem ser amplas, abertas, durar um tempo razoável e observar os postulados da contradição e do diálogo. Um bom procedimento legislativo há de propiciar espaços e tempos adequados para a negociação, para o convencimento e, se possível, para a confluência entre pontos de vista originariamente confrontantes.
Como diz Jeremy Bentham, “para escrever leis, basta saber escrever, e, para estabelecê-las, basta possuir o poder de fazê-lo”. Todavia, “a dificuldade está em fazê-las boas, e as leis boas são aquelas em favor das quais boas razões podem ser apresentadas” [3].
No Estado Democrático de Direito brasileiro, as leis e atos normativos, para serem bons, devem ter lastro social, fundar-se em razões constitucionais, legais, legítimas e lícitas para serem editados, e o seu processo de gestação há de garantir informações claras sobre as situações reais que serão reguladas, além de argumentos e considerações sobre se a lei realmente atende o bem comum.
A abertura do processo pré-legislativo aos cidadãos e aos representantes de grupos e forças sociais permite, segundo precisa observação de Jacques Chevallier [4], identificar conflitos, delimitar os terrenos de confrontação, situar as zonas possíveis de compromisso e visa a uma melhor adaptação das regras, além de atenuar eventuais reações de rejeição.
Enquanto os tecnocratas que elaboram políticas públicas preocupam-se com o atingimento de metas – e não necessariamente com a observância de uma ordem de valores democraticamente plasmada –, os Advogados Públicos velam pela constitucionalidade, legalidade, licitude e legitimidade da ação estatal.
Na ambiência de um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro, cabe à Advocacia Pública a função social e o dever constitucional de viabilizar juridicamente as políticas públicas não só sob aspectos formais (redacionais), mas, também, materiais. Compete-lhe escrutinar tecnicamente as proposições, a fim de possibilitar a produção de normas justas e, na medida do possível, harmonizar juridicamente as distintas pretensões e forças sociais e políticas que, a partir de suas próprias perspectivas, têm, cada qual, uma concreta ideia de justiça.
Cumpre à Advocacia Pública apontar e traduzir aos administradores públicos e aos governantes, sob o ângulo estritamente jurídico, as pretensões, as objeções, as observações, as sugestões, as dúvidas e as incompreensões de todos aqueles que, no processo pré-legislativo de ausculta e debate, manifestaram-se, também com vistas a compatibilizar interesses e expectativas diametralmente opostos e obter maior adesão e consenso social.
Nesse processo processo dinâmico e reiterativo, de interação e interseção entre a sociedade civil e o sistema político-administrativo, a Advocacia Pública pode atuar de diversas formas: por meio de audiências públicas, fóruns de discussões, realização de seminários, capacitação de agentes públicos e lideranças comunitárias, publicações científicas, levantamentos estatísticos, avaliações de impacto normativo, mapeamentos jurisprudenciais, formação de bancos de dados temáticos, entre outras.
Como se observa, a atuação da Advocacia Pública, no campo da produção jurídica, revela-se extraordinariamente fecunda. Sua importância é estratégica aos governos cônscios de que os seus atos devem ser socialmente eficazes e democraticamente legítimos.
[1] Problemas de política objetiva. 3ª edição. São Paulo: Record, 1974, p. 130. [2] A vida do direito e a inutilidade das leis. Lisboa: Editorial Ibero-Americana, 1939, p. 163. [3] Nomografía o el arte de redactar leyes, edición y estúdio preliminar de Virgilio Zapatero. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2004, p. LXXIII. [4] A racionalização da produção jurídica, in Legislação: Cadernos de Ciência de Legislação, Oeiras, nº 3, janeiro-março de 1992, p. 16.(fonte: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-funcao-social-da-advocacia-publica/18048)
Publicado em 02 de janeiro de 2018