ADVOCACIA PÚBLICA, RENÚNCIA FISCAL E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

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Jornal Carta Forense – 02/10/2017

Por Derly Barreto e Silva Filho

A importância estratégica da Advocacia Pública para o Estado Democrático de Direito é manifesta.  Cabe a ela, por meio de suas consultorias e assessorias, orientar, dar suporte e coadjuvar o Poder Executivo no desempenho eficaz das várias competências típicas e atípicas que lhe foram constitucionalmente conferidas.

O diálogo entre o Chefe do Poder Executivo, Ministros, Secretários e demais agentes políticos com competência decisória, de um lado, e os Advogados Públicos com competência técnica, de outro, possui a inegável virtude de conduzir a uma clarificação e maior correção e ajustamento jurídico das decisões de governo, especialmente em sede de políticas públicas.

Ao zelar pela juridicidade dos atos do Estado, a Advocacia Pública tende a mitigar a ocorrência de vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade e outros questionamentos que sobrecarregam o Poder Judiciário e que amiúde redundam em condenações ao erário e aos agentes públicos.

Trata-se de atribuição que extrapola os tradicionais limites internos da Administração Pública, para se projetar para além das pessoas jurídicas, órgãos e agentes públicos que exercem função administrativa, alcançando, reflexamente, por seu proveito, toda a sociedade.

Em que pese essa relevante atribuição constitucional, a atuação da Advocacia Pública ainda não revelou todas as suas potencialidades.

Em São Paulo, os anteprojetos de lei e as minutas de decreto em matéria tributária são analisados pela Procuradoria de Assuntos Tributários, órgão integrante da Procuradoria Geral do Estado (PGE), somente quando determinado pelo Procurador Geral ou solicitado pelo Secretário da Fazenda (cf. art. 43, II, da Lei Complementar nº 1.270, de 2015).  Ou seja, é a conveniência política, e não o rigor jurídico, que propende a falar mais alto nessa seara, circunstância preocupante, porquanto se sabe que as políticas públicas tributárias são normalmente concebidas em círculo fechado de especialistas e autoridades, sem publicidade, sem transparência, obedecendo fundamentalmente a diretrizes estabelecidas pelo próprio governo e carecendo de controles prévios de adequação constitucional e legal e de avaliações de impacto normativo.

Se, por meio de políticas públicas, são concebidas pré-disposições que, no decurso de sua progressiva realização, poderão vir a prejudicar as pessoas, essas pré-disposições poderão tornar-se tanto mais irreversíveis quanto mais progredir a sua execução, de modo que é fundamental assegurar que, desde a sua concepção, elas se amoldem à ordem jurídica.

As políticas tributárias comumente envolvem renúncias fiscais vultosas.  No Estado de São Paulo, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2017 prevê, por exemplo, que a renúncia de receita de ICMS poderá atingir, em 2018, 11,2% da arrecadação prevista – aproximadamente R$ 15 bilhões!

A fim de que o interesse público seja preservado e não haja desvirtuamentos nem favorecimentos indevidos e todos os requisitos estabelecidos na Constituição e nas leis sejam atendidos, deve haver um rígido e obrigatório controle jurídico prévio dessas políticas por parte da Advocacia Pública, que reúne profissionais concursados, tecnicamente capacitados e estáveis no exercício das funções que o ordenamento lhes comete.

É cediço que projetos de lei que dispõem sobre anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, isenção e alteração de alíquota ou base de cálculo de tributo devem ser instruídos com a estimativa do seu impacto orçamentário-financeiro e atender à lei de diretrizes orçamentárias.  Outrossim, os entes tributantes também devem demonstrar, em sua proposição, que a renúncia alvitrada foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária e não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias, ou instruir o projeto com medidas de compensação, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.  É o que determina, de forma cogente, o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Em São Paulo, no entanto, o Tribunal de Contas do Estado emitiu parecer favorável à aprovação das contas de 2016 do Governador, mas com a seguinte ressalva: “Na concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita, o governo deverá atender o quanto determina o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, comprovando, sempre, a estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que o benefício fiscal iniciar sua vigência e também nos dois seguintes, conforme ali prescrito” (parecer).  E isto porque o Estado sistematicamente descumpre o referido comando legal.

Esse fato gravíssimo poderia ser evitado se os anteprojetos de lei em matéria tributária, em especial aqueles que cuidam de renúncias fiscais, fossem – insista-se – obrigatória e previamente analisados pela PGE.

Decerto, os Procuradores do Estado poderiam alertar a tempo os administradores públicos dos sérios riscos e das gravosas consequências jurídicas decorrentes do encaminhamento, aprovação e efetivação de proposições que desatendem a LRF, isto é, que violam o princípio da legalidade.

À guisa de ilustração, o Chefe do Poder Executivo estadual recentemente encaminhou à Assembleia Legislativa paulista o Projeto de Lei nº 253, de 2017, com o objetivo de instituir o “Programa de Parcelamento de Débitos – PPD” e estabelecer, relativamente a débito tributário, (i) a redução de 75% do valor atualizado das multas punitiva e moratória e de 60% do valor dos juros incidentes sobre o tributo e sobre a multa punitiva, na hipótese de recolhimento em uma única vez; e (ii) a redução de 50% do valor atualizado das multas punitiva e moratória e 40% do valor dos juros incidentes sobre o tributo e sobre a multa punitiva, na hipótese de parcelamento; e, relativamente a débito não tributário e multa imposta em processo criminal, (i) a redução de 75% do valor atualizado dos encargos moratórios incidentes sobre o débito principal, na hipótese de recolhimento em uma única vez; e (ii) a redução de 50% do valor atualizado dos encargos moratórios incidentes sobre o débito principal, na hipótese de parcelamento (cf. Propositura).

Da mensagem de encaminhamento, constou, apenas, a menção genérica a “estudos realizados pela Secretaria da Fazenda” e a “ofício (…) encaminhado pelo Titular da Pasta”, que a ela foi anexado.  Referido ofício, de uma lauda, assinado pelo Secretário da Fazenda, compunha-se de três itens, todos descritivos das alterações legislativas propostas: o primeiro relativo à alteração da Lei nº 13.457, de 2009, o segundo concernente à modificação da Lei nº 13.296, de 2008, e o último atinente ao programa de parcelamento de débitos propriamente dito.

Se mencionado projeto tivesse sido tecnicamente examinado pela PGE, os Procuradores do Estado poderiam ter assegurado a correção jurídica da política tributária em questão, mediante solicitação de complementação da instrução da proposição com os elementos legalmente exigidos e indispensáveis, evitando-se, desta sorte, questionamentos judiciais em torno da Lei nº 16.498, de 2017.  Afinal, são frequentes, nos tribunais, casos de declaração de inconstitucionalidade de leis e de condenação de agentes públicos com base no art. 10 da Lei nº 8.429, de 1992, que é translúcido ao prescrever que constitui ato de improbidade administrativa “conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie” (inciso VII) e “agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público” (inciso X), infração que sujeita os seus transgressores ao ressarcimento integral do dano, à perda da função pública, à suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos e à proibição de contratar com o Poder Público, dentre outras cominações (cf. art. 12, II).

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