-MARCIA SEMER-
Logo que me comprometi a escrever este texto comecei a pensar sobre o quê abordar.
O primeiro impulso foi falar sobre fascismo, já que estava lendo obra que me chamara a atenção em passagem que vê no sindicalismo antídoto poderoso contra as práticas fascistas. Tendo dedicado esta última década da minha vida à representação classista, não é de se espantar que esse particular aspecto do tema tenha me chamado substancialmente a atenção.
Mas, como não dei início à escrita e o Natal foi chegando, com toda sua carga de emotividade, pus em dúvida a pertinência do tema. Afinal, tinha questões mais positivas para abordar e, talvez, fosse mais adequado buscar um assunto menos angustiante. Pensei, então, em falar da aprovação, no âmbito da OAB, do Projeto Valentina, que garante a paridade de gênero e percentual (30%) de raça na composição do colegiado da entidade. Indubitavelmente é um assunto incrível, uma conquista histórica que tive o prazer de acompanhar de perto, porque a Valentina que dá nome ao projeto (Dra. Valentina Jungman) é advogada pública, Procuradora do Estado de Goiás, Conselheira Federal na OAB e amiga de muitos anos. É verdade que num outro mundo talvez fosse desnecessário impor por norma esse tipo de balizamento para garantir a representatividade. Mas no nosso mundo a iniciativa foi e é fundamental, necessária, didática e, quem sabe, com o tempo, esse tipo de cuidado seja tão trivial que não precise decorrer de obrigação. Trata-se de iniciativa não só oportuna, mas conectada com seu tempo, visto que encontra paralelo em normativas semelhantes destinadas a ambientes públicos e privados de poder mundo afora.
Veio, então, o episódio do assédio sexual e moral à Deputada Estadual Isa Penna em plena sessão pública da Assembleia Legislativa de São Paulo, à vista de todos, praticado pelo também Deputado Estadual Fernando Cury. A cena inacreditável apresentada em rede nacional e que escancara a atitude cafajeste do parlamentar ocupou o noticiário e as redes sociais, apresentando-se como assunto obrigatório. O turbilhão de emoções e perguntas que se põem sobre um episódio como esse dá a dimensão do desrespeito dirigido à Deputada e por tabela a todas as mulheres. Afinal, que tipo de homem toma uma atitude repugnante, desprezível dessas? O que pensa um sujeito desses? O que passa pela cabeça desse tipo de gente? Quem é esse tipo de gente? Quantos existem? Quem são? Por que são assim? Eles têm mãe, esposa, filha? O que elas pensam disso? O que as mulheres todas pensam disso? E outros homens? Qual será a atitude dos Deputados Estaduais quanto ao episódio? Será mesmo verdade que houve quem tenha se solidarizado com o assediador? Como assim? O Deputado será cassado? Enfim, poderia seguir desfiando interrogações muito mais que afirmações. E se eu que só vi a cena na televisão estou assim, fico imaginando a Deputada.
Inacreditavelmente, ele promove “live” em que, no seu linguajar chulo, parece incentivar o uso de arma de fogo para combater o governador de São Paulo- que chama de “calcinha apertada”- ou seu governo.
Os dias se seguiram sem que eu desse início ao texto. Aproxima-se o Natal. O país atolado na pandemia, nenhuma notícia sobre a vacina. Pior, o Butantã posterga mais uma vez o esperado anúncio da eficácia da Coronavac, a tal vacina chinesa, que também é brasileira, paulista. O nome atende diversos gostos, intenções ou pretensões. Medidas restritivas adicionais para conter a nova onda de contágio são anunciadas em muitos Estados, o Governador de São Paulo viaja e a metralhadora giratória verbal do Presidente da República atinge o paroxismo. Inacreditavelmente, ele promove “live” em que, no seu linguajar chulo, parece incentivar o uso de arma de fogo para combater o governador de São Paulo- que chama de “calcinha apertada”- ou seu governo. Um enredo de mau gosto onde a arma de fogo se apresenta como sucedâneo macabro de Deus em caminho para a libertação. Sem que houvesse tempo para o processamento dessa declaração irresponsável, para dizer o mínimo, outra é disparada. Agora, para dizer que “não dou bola pra isso”, ante o fato do governo federal não nos ter apresentado até aqui perspectivas reais para a vacinação da população, quando outros países já iniciam a imunização em escala.Ao que se seguiu ainda ofensa torpe à Presidente Dilma, em que ironiza a tortura de que ela foi vítima. Sinceramente, não sei se Freud explica. Mas, o fascismo sim.
Volto então ao meu ponto de partida e ao livro de Jason Stanley, professor de filosofia na Universidade de Yale, intitulado “Como Funciona o Fascismo- a política do “nós” e “eles”[1], que acabei de ler por estes dias.
Trata-se de leitura interessante que expõe as características básicas do fascismo e procura identificar a política fascista em governos e governantes de agora. Embora o autor não se debruce sobre o Brasil, a obra é muito útil para a compreensão do momento histórico que estamos vivendo, assim como sua gênese e gravidade.
Logo na introdução ele apresenta a origem do slogan America First adotado por Trump em sua campanha e trajetória presidencial. Na linha do nada se cria, tudo se copia, Trump resgatou a máxima do movimento que se opunha à entrada dos Estados Unidos na guerra contra a Alemanha Nazista e que tinha em Charles Lindbergh, o famoso aviador americano, seu garoto propaganda. Como explica o professor Stanley, o movimento America First era o retrato do sentimento pró-fascista dos Estados Unidos da época. Charles Lindberg, inclusive, defendia publicamente algo muito parecido com o nazismo para os americanos. Foram palavras do aviador:
“Chegou a hora de deixarmos de lado nossas contendas e contribuirmos nossos baluartes brancos mais uma vez. Essa aliança com raças de fora não significam nada além de morte para nós. Agora é a nossa vez de proteger nossa herança dos mongóis, persas e mouros, antes que sejamos engolidos por um mar estrangeiro sem limites.” [2]
A exaltação da ditadura militar, os ataques às universidades e à cultura, o uso deliberado de fake news, o “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, as bravatas patrióticas contra a pressão internacional por defesa da Amazônia, as inúmeras piadas e insinuações – de profundo mau gosto, diga-se- de cunho sexual proferidas amiúde pelo presidente, o desmonte da legislação trabalhista, das garantias previdenciárias, dos direitos estatutários, a atuação descoordenada e omissa na pandemia são todos elementos que não permitem dúvida sobre o buraco em que nos enfiamos.
O “Make the America Great Again” também usado por Trump segue a mesma linhagem do movimento America First, tendo sido repaginado no Brasil para o bordão bolsonarista “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”, em adaptação de terceira mão da estética fascista.
Interessado nas táticas fascistas para alcançar o poder, Jason Stanley elenca como estratégias da política fascista (1) o passado mítico, (2) a propaganda, (3) o anti-intelectualismo, (4) a irrealidade, (5) a hierarquia, (6) a vitimização, (7) a lei e ordem, (8) a ansiedade sexual, (9) os apelos à noção de pátria e (10) a desarticulação da união e do bem-estar público.
Acentua que o sintoma mais marcante da política fascista é a divisão da população em “nós” e “eles”.
O simples passar de olhos pelo elenco de estratégias enumeradas pelo estudioso é capaz de acender o alerta de que sim, estamos sendo alvos desse tipo de política no Brasil. A exaltação da ditadura militar, os ataques às universidades e à cultura, o uso deliberado de fake news, o “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, as bravatas patrióticas contra a pressão internacional por defesa da Amazônia, as inúmeras piadas e insinuações – de profundo mau gosto, diga-se- de cunho sexual proferidas amiúde pelo presidente, o desmonte da legislação trabalhista, das garantias previdenciárias, dos direitos estatutários, a atuação descoordenada e omissa na pandemia são todos elementos que não permitem dúvida sobre o buraco em que nos enfiamos.
A política fascista fundamentalmente é política que não tolera a alteridade, que floresce do sentimento mesquinho que “faz com que nosso sofrimento pareça suportável se soubermos que aqueles que menosprezamos estão sofrendo mais”[3]. A política fascista promove a divisão para exercer sua pulsão de destruição ou morte. Na política fascista de médio e longo prazos não há espaço de sobrevivência viável para os “eles”.
Saída? Tem saída desse atoleiro?
O primeiro passo é entender que estamos submetidos a uma política fascista. Tomar consciência sobre onde se está na história é imprescindível para endereçar rotas de fuga.
Feito isso, e a despeito de todo ceticismo de Hegel, é tentar extrair algum ensinamento da história, ainda que seja só o sentimento de medo de viver algo semelhante ao nazismo de Hitler, e ser o novo judeu, cigano, comunista ou portador de deficiência do momento.
No mais, é trabalhar pela união e pelo bem-estar. Não é à toa que a ira dos fascistas jura de morte o slogan antítese do American First e seus similares. Não é à toa que “Trabalhadores do mundo, uni-vos” é a pedra no sapato da extrema direita.
No capítulo intitulado “Arbeit Macht Frei”, o professor Stanley pontua que a valorização da autossuficiência e do individualismo estão no cerne da ideologia fascista, sendo o ambiente de acentuada desigualdade econômica mais permeável às suas políticas.
Daí porque, conforme estudo do cientista político de Harvard, Archon Fung citado pelo autor de “Como Funciona o Fascismo”, “muitas sociedades que têm baixos níveis de desigualdade também têm alta participação nos sindicatos de trabalhadores” e “países com alta densidade sindical têm baixa desigualdade de renda (Dinamarca, Finlândia, Suécia e Islândia), e os países de alta desigualdade também têm baixa densidade sindical (EUA, Chile, México e Turquia)”. Afinal, os sindicatos são ambientes de união e luta pelo bem-estar.
Apostar e valorizar os instrumentos de inclusão social e fazer frente a estratégias e atitudes sexistas, irrealistas, hierarquizantes, vitimistas, dentre outras são antídotos necessários de combate ao fascismo de cada dia.
Nesse contexto, a aprovação do Projeto Valentina na OAB e a condenação pública ao assédio enfrentado por Deputada paulista em plena sessão do Parlamento representam importantes atos de resistência.
1-Stanley, Jason. Como funciona o fascismo. A política do “nós” e “eles”. Porto Alegre, L&PM editores, 5ª edição, 2020.
2-Op. cit, pag. 12.
3-Op. cit., pag. 176
Márcia MBF Semer é a atual Presidente do SindiproesP e membro do IBAP. Mestre e doutora em Direito do Estado, é Procuradora do Estado de São Paulo.