Desde que o governo interino iniciou seus trabalhos, temos acompanhado um desfile previsível de propostas trazidas a público nos jornais, rádios e televisão para solução da crise econômica pela qual passa o país.
Reforma da previdência, reforma trabalhista e terceirização são algumas das medidas propugnadas, o que já vai deixando bem claro quem o governo pretende que pague o pato pelos problemas econômicos que enfrentamos.
Mas a flexibilização ou enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores é apenas uma das vertentes do pacote governamental.
O Estado ou, mais especificamente, os recursos do Estado brasileiro, são o outro alvo de especial interesse, e sob duas perspectivas: a ampliação das áreas de privatização e a venda, sob o nome sofisticado de securitização de ativos para o mercado financeiro.
O Senador tucano José Serra (PSDB), hoje Ministro interino de Relações Exteriores, é o artífice de pelo menos duas das propostas que confirmam esse quadro, na medida em que são o retrato fiel da investida do mercado sobre o patrimônio público. São elas: a alteração nas regras de partilha do pré-sal (PLS 131/2015 – em curso) e a securitização da dívida ativa (PRS 50/2015- já aprovada).
Por “alteração das regras de partilha do pré-sal” deve-se entender basicamente a retirada da exclusividade da Petrobrás sobre a operação da camada do pré-sal – que hoje, por lei, está reservada à estatal.
Como se sabe, foi a Petrobrás quem identificou a existência de petróleo no pré-sal, assim como desenvolveu tecnologia para extraí-lo das profundezas do oceano. Feito todo o investimento para se chegar às descobertas, para desenvolver tecnologia necessária e minimizar substancialmente riscos inerentes a esse tipo de empreitada, a proposta de Serra (PSDB) visa, agora, abrir para empresas petrolíferas privadas a exploração do petróleo dessa camada.
Trata-se do segundo grande passo rumo à privatização de nossos recursos petrolíferos e quebra da histórica bandeira do “O Petróleo é Nosso”, que levou em 1953 à criação da Petrobrás. A primeira ocorreu em 1995, no governo do também tucano Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que por emenda constitucional (EC nº 09/1995) admitiu a contratação de empresas privadas para exploração do petróleo, atividade permitida apenas à Petrobrás na redação original da CF/88.
Mas para além do visado tema da privatização na área do petróleo e gás natural, assunto que ronda o noticiário ano sim outro também, a pauta da securitização da dívida ativa merece nossa particular atenção e deveria merecer a sua também.
Dá-se o nome de securitização a uma forma peculiar de captação de recursos, diferente do tradicional empréstimo.
No empréstimo, o tomador capta recursos de outrem e se obriga a devolvê-los no futuro, com acréscimos em regra previamente combinados (correção monetária e juros). Essa é a forma tradicional que as pessoas e os Estados de modo geral usaram e usam para obter recursos financeiros em momentos de crise ou mesmo para grandes investimentos.
Na securitização, o tomador aparentemente não se endivida, pelo menos não da forma clássica, pois financia as necessidades vendendo recursos que teria para receber no futuro. Essa venda, contudo, opera-se mediante deságio ou desconto, que é calculado pelo mercado financeiro (empresas de rating) com base na avaliação de risco da operação (leia-se: possibilidades do pagamento futuro não se concretizar).
Mas se não gera endividamento, descapitalização ou diminuição do patrimônio é a condição necessária para a captação de recursos pelas mãos da securitização.
A dívida ativa, por sua vez, é o conjunto de créditos que o Estado tem para cobrar das empresas e pessoas que não pagaram seus impostos corretamente ou em dia, bem assim das empresas ou pessoas que devem ao Estado por razões contratuais ou de multas (de trânsito, ambientais, sanitárias, de ofensa a direito do consumidor, dentre outras) não pagas.
Pois bem, a engenhoca chamada securitização da dívida ativa é, nada mais nada menos, que a venda, em uma espécie de liquidação, ao estilo “black friday”, desse patrimônio do Estado. Um negócio que só se viabiliza entregando esses créditos estatais futuros a preço de banana, que se estima abaixo de 50% do valor- há quem garanta que não passa dos 20% do valor.
Vender barato o patrimônio público não é, vale dizer, o único “inconveniente” da proposta, embora soe um tanto desconexo com o contexto que vivemos. Afinal, tanto trabalho, tantas leis, tantas instituições, tanto discurso, tanta imprensa, todo um enorme aparato para que se economize recursos públicos, para que se empregue corretamente esses recursos (a presidente foi sacada do cargo pelas famosas “pedaladas”), para que se evite perda de recurso público em licitações, contratos, convênios (o país todo acompanha a espetacular Operação Lava Jato de combate à corrupção), para, simultaneamente, pretender-se promover um saldão da dívida ativa.
Outro aspecto intrigante dessa forma enviesada de captação de recursos é que, para realizá-la, e isso quase ninguém fala, é preciso investir, gastar recursos públicos, com desembolsos de curto, médio e longo prazos.
Por despesa de curto prazo citamos a constituição de uma SFE, ou Sociedade de Fins Específicos, necessária para gerenciar o negócio, e que, como qualquer estrutura estatal ou empresarial, gera custos próprios, inerentes à execução da atividade: criação de cargos, empregos (provavelmente comissionados), etc, etc.
Essa Sociedade, custeada pelo Estado, por sua vez, deverá, a cada lançamento de títulos para o mercado, arcar com os custos, que podemos chamar de médio prazo, para contratação de empresas de rating, nacionais ou internacionais, executoras de avaliação de risco e, portanto, responsáveis por indicar ao mercado o percentual de deságio aplicável ao negócio, além das despesas de administração da operadora financeira, vale dizer, do banco.
Ainda, tendo em vista nossa estrutura constitucional, segundo a qual a cobrança da dívida ativa é competência intransferível da Advocacia Pública, caberá ao Estado brasileiro manter e até investir em seu aparato jurídico, a fim de garantir, não mais para desfrute de seus cidadãos, mas do mercado, a recuperação integral daqueles créditos tributários e não tributários vendidos, transferindo os valores cheios arrecadados, devidamente acrescidos de todos os juros e correção monetária, aos investidores.
Por fim, nunca é demais registrar o óbvio: os recursos vendidos pela metade ou menos que isso do valor, e que seriam no futuro fonte esperada e certa de renda – até porque mercado nenhum vai comprar ativo que não tenha boas chances de ser recuperado- não existirão para entrar no caixa amanhã, quando estaremos desguarnecidos.
Nesse cenário, embora fique bastante tentada, não digo que a proposta é economicamente indecente. Tenho para mim que cada leitor ou eleitor é capaz de formar seu próprio juízo.
Já a higidez jurídica da iniciativa, essa posso garantir que é muito, muito precária. A verdade é que, do ponto de vista jurídico, é preciso esforço, empenho, boa vontade interpretativa para vestir a securitização da dívida ativa com um traje que lhe dê alguma aparência de legalidade.
Não são poucos os questionamentos de natureza jurídica solidamente oponíveis à viabilidade da transação. Não são poucas as vozes que têm alertado para a temeridade da iniciativa. Da impossibilidade da alienação de créditos tributários à ofensa à lei de responsabilidade fiscal (por promover antecipação de receita, dentre outros), passando pela afronta aos princípios constitucionais da igualdade e capacidade contributiva. Todas essas são objeções legais sérias, da maior gravidade, que, ao fim e ao cabo, sinalizam para o mercado negócio de alto risco, factível, quando muito, mediante severa depreciação do ativo colocado à venda.
Sobre a securitização da dívida ativa, certo mesmo, ao que tudo indica, é que constitui obra cerebrina genuinamente nacional, verdadeira jabuticaba cujo plantio vem sendo cuidadosa e insistentemente tentado, alguns inclusive já realizados, em estados (como São Paulo, Paraná e Minas Gerais) e municípios do território nacional.
Em seminário realizado este ano na capital paulista sobre o tema, os participantes puderam, com surpresa, tomar conhecimento de que pesquisado o assunto pela empresa de rating expositora, não foi encontrada operação semelhante de securitização de créditos de dívida ativa em nenhum mercado do mundo, o que lhe trazia mais um desafio para cálculo do deságio, decorrente da inexistência de parâmetros aptos à aferição da viabilidade do negócio, ao que se agregava a incerteza quanto ao interesse do mercado no produto. Talvez os maiores interessados sejam os próprios devedores do Estado, que podem comprar a dívida – ou montante equivalente da dívida- por 1/5 do preço e ainda obter lucro ao final, além dos bancos, empresas derating e dos comissionados na SFE. Provável, também, que o resto do mundo financeiro nunca tenha pensado nesse filão negocial.
Securitização da dívida ativa: jabuticaba financeira e jurídica é coisa nossa.
Márcia Semer é Procuradora do Estado de São Paulo e Secretária Geral do Sindiproesp.